Prosperidade sem posteridade: Por que o dinheiro não garante filhos
Valores, não dinheiro, alimentam a crise de baixa natalidade.
Ao observarmos a queda quase universal nas taxas de fertilidade, muitos dizem que o problema é a falta de dinheiro. Mas a evidência histórica é clara: a fertilidade cai à medida que as nações ficam mais ricas. Considere a Coreia do Sul e a Polônia — duas histórias de sucesso econômico moderno. A Coreia do Sul e a Polônia viram suas rendas reais quadruplicarem em uma geração. Indo mais longe, a renda da Coreia do Sul aumentou mais de cem vezes desde 1960. Mas o que aconteceu com a fertilidade em meio a essa explosão de riqueza? Ela despencou.
Na Polônia, a Taxa de Fertilidade Total (TFT) estava em alarmantes 1,12 no início de 2024, uma das mais baixas da Europa. Enquanto isso, a Coreia do Sul atingiu o recorde mundial mais baixo, com apenas 0,72.
Se um aumento de cem vezes na renda da Coreia do Sul coincidiu com uma queda de nove vezes na fertilidade, podemos honestamente acreditar que um pouco mais de dinheiro resolverá o problema? O mito de que a prosperidade econômica, por si só, reviverá as taxas de natalidade se mostra quebrado.
A cientista social Dra. Alice Evans apontou uma provável conexão entre o aumento da depressão e as baixas taxas de fertilidade, observando o duplo status da Coreia do Sul como o país com a taxa de fertilidade mais baixa e a maior taxa de suicídio do mundo. O demógrafo Lyman Stone também encontrou uma forte correlação inversa entre bem-estar emocional e fertilidade.
O que há na modernidade que leva tantos ao desespero, deixando-os infelizes e sem filhos? Fundamentalmente, é uma crise de significado. E essa crise tem um componente religioso inegável. A religiosidade, uma importante fonte de sentido para muitos, está correlacionada com menores taxas de depressão e maior fertilidade — basta considerar grupos como os Laestadianos e os Amish da Pensilvânia. Uma sociedade que não consegue oferecer uma estrutura coerente de significado é uma sociedade em declínio. E dinheiro, por si só, não pode preencher esse vazio.
Indivíduos com educação universitária tendem a perceber os filhos mais como um custo—financeiro, emocional e logístico—do que como uma fonte de realização ou legado. Essa visão contrasta com a de pessoas com menor nível educacional, que geralmente veem os filhos como parte essencial da família, da comunidade e da continuidade de valores.1
Pais em geral não esperam obter retorno financeiro dos recursos investidos na criação de seus filhos, enquanto muitos que optaram por não ter filhos frequentemente expressam arrependimento, ao perceber que perderam a oportunidade de construir uma família e deixar um legado.2 A renda da família onde alguém foi criado não determina diretamente seu sucesso financeiro futuro. Tampouco viver em um bairro de alto padrão influencia o resultado financeiro individual.3 Embora pais bem-sucedidos possam proporcionar uma vantagem inicial, o fator realmente determinante é a hereditariedade, que exerce uma influência substancialmente maior. É por meio dos genes, e não das circunstâncias imediatas, que os filhos herdam não apenas o nível educacional dos pais, mas também sua capacidade de prosperar financeiramente. Isso sugere que a transmissão intergeracional da prosperidade se apoia mais na biologia do que no ambiente imediato.4
No contexto econômico atual, criar uma família grande é, surpreendentemente, mais viável do que em gerações passadas. A realidade é que somos, em média, mais de três vezes mais ricos do que em 1950, com melhores condições materiais e de infraestrutura. Onde as famílias de outrora viviam em moradias modestas, as famílias modernas contam com lares amplos, frequentemente equipados com ar-condicionado e outras comodidades que garantem maior estabilidade e segurança financeira.
Para as mulheres, embora afastar-se do mercado de trabalho signifique uma perda de renda, essa perda parte de uma base de ganhos significativamente maior do que a de suas antecessoras. Em outras palavras, a renda potencial das mulheres é tão elevada que elas poderiam, em teoria, trabalhar menos e ganhar mais enquanto ainda optam por ter uma prole maior. Com o aumento dos salários masculinos, para muitas mulheres casadas tornou-se mais acessível optar por uma vida dedicada ao cuidado dos filhos, caso o desejem. Caso essa escolha seja percebida como antiquada, as mulheres também poderiam reagir ao aumento salarial mantendo-se no trabalho, investindo em mais filhos e destinando parte desse excedente financeiro para contratar auxílio doméstico ou educacional.5
Criar filhos ainda é um desafio, é claro, mas é uma tarefa que se tornou inegavelmente mais facilitada e menos custosa do que era em gerações anteriores.6
A hipótese de que o aumento de recursos financeiros promove um aumento na prole aplica-se fundamentalmente aos homens, mas não às mulheres. Para os homens, uma elevação substancial de riqueza – como uma vitória na loteria – geralmente resulta em casamento e mais filhos, refletindo seu instinto biológico e social para investir na expansão familiar. Para as mulheres, contudo, a reação à melhora financeira se diferencia. Quando mulheres de baixa renda obtêm uma quantia significativa, muitas vezes optam pelo divórcio, indicando que seu comportamento reprodutivo não é diretamente influenciado por um acréscimo econômico. Em vez disso, elas parecem priorizar a independência e estabilidade pessoal sobre a procriação.7
O declínio da fecundidade no Brasil é um fenômeno complexo, moldado por mudanças socioculturais e econômicas profundas. Um fator de peso é o chamado “efeito telenovela,” que popularizou a visão de famílias menores e mais prósperas na televisão brasileira. Esse retrato de um estilo de vida mais individualista e voltado ao consumo influenciou os ideais familiares, reforçando a preferência por menos filhos.8 Paralelamente, entre as décadas de 1980 e 2000, houve um aumento expressivo na esterilização e uso de métodos contraceptivos, uma época que ficou conhecida como “fábrica está fechada,” sinalizando uma mudança coletiva em direção ao controle do tamanho das famílias.
Programas governamentais, como o Bolsa Família, foram analisados quanto à sua influência sobre a fecundidade, já que impactam segmentos economicamente vulneráveis. Dados da PNDS de 2006 indicam que, em vez de incentivar maior fecundidade, o Bolsa Família está associado a uma redução estatisticamente significativa nas taxas de natalidade entre as beneficiárias. Esse efeito foi mais pronunciado entre mulheres de baixa renda, sugerindo uma diminuição da fecundidade mesmo em grupos historicamente mais propensos a ter mais filhos.9
As projeções da ONU e do IBGE reforçam essa tendência demográfica, prevendo uma taxa de fecundidade total (TFT) em torno de 1,65 filhos por mulher até meados do século, com possível recuperação para apenas 1,77 em 2100. Em linha com essas tendências, a TFT do Brasil já chegou a 1,57 em 2023 — ou seja, agora o país possui uma TFT mais alta que Argentina, Colômbia e México, após ter tido historicamente a menor taxa entre as grandes nações da América Latina.10
Essa forte queda na fecundidade coloca o Brasil no caminho da estagnação demográfica e eventual declínio populacional, com uma força de trabalho insuficiente para sustentar uma população envelhecida. Até 2050, o país enfrentará um "abismo demográfico": mais de 60 milhões de aposentados e uma população caindo para 220 milhões, com um peso crescente dos idosos.11 Sem incentivos vigorosos para fortalecer a formação familiar na classe média, o Brasil corre o risco de ter uma base de trabalhadores cada vez menor, ameaçando a estabilidade econômica e a capacidade de sustentar os sistemas sociais no futuro.
Muitos pais exageram a quantidade de recursos e tempo que precisam dedicar aos filhos para que eles tenham um futuro de sucesso. Quando 70% dos brasileiros são proprietários de imóveis12 e uma fatia significativa da população investe em serviços de streaming (60%)13 — com o Brasil sendo um dos maiores mercados da Netflix (apenas atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido como maiores mercados)14; um quarto dos consumidores optou por manter suas assinaturas, mesmo diante dos aumentos de preços praticados pelos serviços — temos aí uma evidência clara de capacidade econômica que poderia muito bem ser direcionada para aumentar a natalidade e sustentar famílias maiores. Mas em vez disso, opta-se por direcionar esses recursos para entretenimento e status. Ao avaliar o custo total dos serviços de streaming, percebe-se um consumo direcionado ao entretenimento, cuja soma anual, considerando os serviços básicos e premium, ultrapassa valores que muitas famílias investem em educação e saúde. A despesa anual de aproximadamente R$ 4.900,00 em streaming15 e cerca de R$ 1.875,60 em música revela uma escolha de alocação de recursos em bens de conforto imediato, mas de baixo retorno econômico ou produtivo.
No entanto, isso não se limita a uma questão de lazer; é um reflexo do apelo psicológico por pertencer a um grupo social atualizado tecnologicamente e culturalmente.
Esse fenômeno é ainda mais evidente quando indivíduos de baixa renda sacrificam gastos básicos — como alimentação e moradia — para adquirir bens que simbolizam status social, como um iPhone.16 Um relatório da Nielsen de 2017 revelou que, independentemente de riqueza e renda, mulheres negras são mais propensas do que mulheres brancas a possuir veículos de luxo e comprar joias,17 enquanto um relatório de 2013 mostrou que a posse de smartphones entre negros era superior à média dos americanos.18 Essa prática de compra demonstra o uso do consumo como uma tentativa de afirmação em uma sociedade que valoriza o poder de compra como um sinal de respeito e dignidade.
Ademais, o investimento significativo em apostas esportivas entre beneficiários do Bolsa Família (17% dos beneficiários do Bolsa Família apostam ou já apostaram em esportes, com gastos mensais superiores a R$ 100), especialmente na região Nordeste (18% da população participa dessas apostas), sugere uma preferência por gastos de alto risco e baixo retorno.19 Em agosto de 2024, beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas, com os mais jovens apostando cerca de R$ 100 por mês e os mais velhos mais de R$ 3.000 mensais, segundo o Banco Central.20
Indivíduos pertencentes a classes sociais mais baixas dispõem de maior tempo livre, porém frequentemente o utilizam em atividades que, além de menos benéficas para a saúde, também costumam ser mais dispendiosas, como assistir televisão, relaxar, socializar, participar de apostas, jogar videogames e fazer uso de drogas recreativas. Em detrimento de hobbies mais acessíveis e saudáveis, como a prática de corrida, observa-se que essa população tende a se engajar menos em esportes e exercícios físicos de modo geral.21
Essa realidade contrasta com a transformação histórica no uso do tempo livre; trabalhadores de 1995, por exemplo, ao serem comparados aos de 1880, desfrutaram de um aumento significativo nas horas de lazer, com muito menos esforço necessário para obtê-las. No Brasil, essa mudança se reflete na diminuição das horas de trabalho anuais por trabalhador, que passaram de uma média de 2.042 horas em 1920 para 1.709 horas em 2017.22 Isso significa que o brasileiro trabalha 333 horas a menos do que trabalhava anteriormente.
Não só o brasileiro tem mais tempo livre; como os pais, tanto mães quanto pais, têm se dedicado mais aos filhos do que antigamente. Em 1965, quando o papel predominante das mulheres era o de donas de casa, as mães dedicavam, em média, dez horas semanais exclusivamente às necessidades dos filhos. Porém, até o ano 2000, esse número subiu para treze horas semanais, apesar de as mães modernas serem muito mais propensas a trabalhar fora de casa, terem menos filhos e contarem com uma participação mais ativa dos pais nas tarefas familiares. Curiosamente, ao contrário do que se poderia esperar, as mães modernas não estão dedicando menos tempo aos filhos, mas sim mais. Tudo indicaria que, sob essas condições, as mães modernas deveriam estar dedicando menos tempo a seus filhos do que no passado, mas o oposto é observado.23
Em muitos países (Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Dinamarca, Itália, Holanda, Eslovênia, Espanha e nos Estados Unidos), os pais estão passando muito mais tempo com seus filhos do que seus pais passavam com eles.24 No entanto, a percepção de muitos pais costuma ser a oposta, ou seja, a falta de tempo com seus filhos.
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